Nem sei como me dirigir a ti ... suponhamos que aqui vem qualquer coisa como querido, caríssimo, excelentíssimo, ou algo menos informal, como o teu nome ou a tua alcunha.
Morreste-me hoje. Ainda que vivas, já não vives para mim, já nada te resta aqui. Cortaste-te e cortaste-nos.
Parece que ainda me lembro do cheiro sempre intenso com que entravas
pela porta, o rosto rasgado, nos dias bons, a pele morena porque a praia era a tua paixão. Ainda te vejo na relva dos concertos que fomos, tu porque te apetecia, eu porque não tinha autorização. Recordo também o teu sorriso maroto, com duas imperiais na mão, porque não bebias sem companhia, e apenas eu te acompanhava. Inunda-me agora o cheiro mais ténue da ilegalidade cúmplice que fomos ocultando, tu porque não lhe encontravas mal, eu porque te queria acreditar assim, como o bom rapaz que julguei conhecer. Sei de cor as viagens que fiz pela auto-estrada sem saber se te ia encontrar vivo ou morto, ou sem te encontrar sequer. Tenho gravada a imagem da tua casa fechada, os vidros no chão, o jardim imundo, sujo e por tratar. E tu à porta, magro que nem um cão. Limpo, mas por pouco tempo. Sorrio ao lembrar da vez que te levámos um bolo de anos com bonecos de desenhos animados a guardar as velas que anunciavam trinta e dois. Noite longa essa, passada na auto-estrada a caminho de ti. Com muita confusão juliana. E motas.
Lembro-me dos pormenores dos teus quartos em que estiveste para te renovar e descansar. Azuis, com grades. Nunca percebi porque teimavas em sair antes do tempo, se sabias que a escada desce sempre.
Mas estas são apenas as memórias reais de quem já não existe. Não te conheço, e a conhecer-te, tenho repulsa do que és, da besta disforme e canalha em que te tornaste. Do impiedoso turbarão voraz, do frio animal sem gota de sentimento, racional como nunca te julguei capaz de tal premeditação brutal. Ninguém te merecia isto, muito menos tu próprio. Eras o mais manso dos cordeiros, mas tornaste-te o mais carniceiro dos lobos. Envenenas o sangue que te gerou e se sacrificou todos estes anos para que pudesses viver. Destróis a velhice de quem nada mais viu senão a ti, quem te alimentou, quem te vestiu e amou da forma mais pura que soube. Violaste a palavra pai, negaste o abraço que te foi acarinhando. Por nada, por um nada branco e outro castanho. Pela merda que já não separas de ti.
Nada mais tenho para te dizer. Só que fiquei sem primo hoje.