Veio a manhã, a tarde, e depois a noite. Vieram as nuvens cor de sonho, vieram os azuis retocar o céu frio, vieram os negros da noite lembrar que o tempo não pára. Escorre, infinito e ininterruptamente. Cabemos no meio do tempo, porque o tempo é apenas um escorrer de nadas, onde nos aninhamos.
Vieste tu, no meio do desconhecido, trazer-me sorrisos embrulhados em olhares que sempre me desarmaram, em palavras que quase nem se dizem, por não serem suficientes, em cordas que se deram, trocaram, e se amaram assim. Nas pequenas coisas. E nas grandes. Como nós.
Trouxe-te enquanto te deixava pelo vidro, cada vez mais longe, e sempre tão perto. Ficámos enquanto parti, e entendi a dor de partir, entendi porque a senti no escuro sonolento da viagem. Abracei-me às tuas palavras, e quase senti a tua mão na minha. E mudámos de cor, fizemo-nos arco-íris, como nos acordes que hás-de traçar para mim. Como nos meus olhos. Nas minhas mãos. És tu que brilhas em mim, e és tu que trazes o quente para que te possa abraçar sem hesitações.
E soubesse eu escrever, dar-te-ia as palavras, não alinhadas e rectas pela sua morfologia ou conteúdo, devolvia-me em ti na fúria das palavras que não se conseguem conter, porque são de mil cores e trazem em si tudo o que sinto sem saber traduzir, e que ainda está para descrever pelo melhor dos poetas.
E é por ser tão pequenina mas tão grande que te trago, que apenas to diria na sua forma mais simples ... amo-te. É tão simples e pleno que nada mais to diria, porque tudo o resto o podes ler em mim.
Faço o meu preço.
Sacudo das mãos a terra em que te escavei. Dispo-me de ti, e não sais. Persistes, regressas.
Arranho a pele, arranco-te, desfaço-nos como se o sangue pudesse encharcar a terra.
Algures no tempo, hei-de tombar. Hei-de cair, ainda sem entender porque insistes.
Não é a ti que sufoco, e enquanto te solto vou implodindo infectada pela dor de não ficar.
Faz frio, e a dormência em mim é a pausa de não me saber viva, antes crua.
Fecho os olhos. Não te quero ver, enredado em teias cor de laranja que não conseguimos desatar. Nem te quero ouvir, nem sentir, nem cheirar. Porque se te aproximas de mim sou eu quem chega também.
Tens sempre esse travo a algo mais, a tudo mais, a nada mais. Sempre essa simplicidade de quem sabe que o sol se põe apenas para se entreter enquanto a lua se ri enquanto durmo. E és luz presente ausente constante perene.
Algo em mim diz que não acabas. Algo em ti diz que não sou eu.
Explica-me
Leva-me
Abraça-me
Beija-me as lágrimas enquanto caem,
porque não sei porque caem,
nem para quem caem,
mas ardem ao cair
Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve,
breve instante da loucura
Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia
do que pensa
do que sente a gente certa
Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo
Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura
Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo
Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura
José Carlos Ary dos Santos
Cavalo à solta
(Fernando Tordo)
... ganhei a certeza de ti em mim.
Chegam estas palavras, tão mais brilhantes e quentes que as minhas.
Há raios de qualquer coisa inexplicável que trazem saudade no vento electrizante dessa voz que aprendi a conhecer.
E todas as palavras que escutei desfizeram-se num aperto fechado, num abraço quase fugaz mas que concentrava todo o sal de todas as esperas.
E se em ti me perdi foi porque me encontrei algures num corpo que era teu e o conheci sem saber. E se de mim me escondi foi para calar essa ausência de ti que cicatriza as minhas mãos. E se em nós me calei foi para nos dar o espaço que dois corpos ocupam, e não apenas um, não apenas o teu, não apenas o meu.
Viajamos à velocidade desse vento que não persiste além deste peito que te contém imenso. Quase nos cantamos sofregamente, quase nos perdemos em nós. Mas, finda a viagem, morta a distância, sabe tão bem reflectir no espelho o calor do teu abraço. E saber-te aqui. E saber-me aí.
Isto é o que eu sou. Tudo isto. É mais fácil de entender do que de dizer. Muito mais.
~ * ~ * ~ * ~
Desfaço-me em palavras. Ou construo-me a partir delas. Há uma qualquer raíz quadrada de complexidade que grita a plenos pulmões para sair. Há ainda uma criança com mil e um eus de mim que sorri. Há também a parte de mim que sobrevive nas palavras.
Mas tudo, tudo isto, só faz sentido, só ganha vida e asas e voz, quando amo. A inconstância do meu vento tem a força da desilusão de não saber ser eu sendo muitos eus. Sou eu sempre.
Há fins que perduram ... infinitos, que nos alcançam pelos calcanhares da dor breve, outros há que são fins a medo, como cortinas de fumo, espessos ao primeiro olhar, mas diluem-se na brisa que só tu encontras.
Repisei os mesmos traços na estrada, e apenas ouvia o nosso eco distorcido:
- A tua dor sabe-me a vazio
- O teu vazio sabe-me a dor
Abri o arco-íris, e na palma da minha mão aberta alguém tatuou um sorriso do tamanho maior que poderia imaginar. E perante a magnitude desse sorriso feito olhar, que mais poderia fazer? Esquecer, lembrar, perder, ganhar. Tudo lados certos e errados da mesma mão que abri para te deixar entrar.
- Não me olhes assim
- Olha para mim
É uma história pequena, feita de palavras e de mãos, talvez minhas ou tuas, não sei, nem sei se é importante, ou se o teu mundo acaba quando for meu. O meu mundo é quase nosso.
- A tua mão cabe na minha
- A minha mão é tua
Estou dorida de fins que não quis nem previ. Quero cortar o fim em pedacinhos de papel recortado em abraços. Abraços, que são tão fugazes como duradouros dentro de mim.
- Deixa-me desenhar-te o rosto com os dedos
- Sim, enquanto te desenho com palavras