Deixa-me cair. Deixa-me provar que não sei flutuar sem os teus braços.
Deixa-me morrer de sede, definhar de ausência.
Larga-me no meio do deserto, onde o calor do teu abraço não chega. Desliga a máquina da esperança, que não serve para nada.
Deixa-me morta de fome para ser alimento de abutres, estende-me numa cova aberta pelas tuas mãos.
Cala-me à força de murros e bofetadas, encosta-me à parede nua e deixa-me morrer de frio. Deixa-me a cara negra, arranca-me a pele, tritura-me a carne e os sonhos.
Deixa-me afogar e queimar-me na lava desta fúria. Arrasta-me pela estrada de calhaus, angulosos e que ferem o corpo. Atira-me dum barranco, enterra-me viva.
Deixa-me cair, simplesmente.
Porque morta já eu estou.
Estou. Sou. Quero. Dou.
Encosto-me a uma porta de madeira velha, parece que quase entro por ela, mas ficarei sempre do lado de fora, sempre a desejar a transparência. Sempre?
Para sempre é tão distante, e sempre achei que as minhas mãos seriam suficientes para enlaçarem as tuas. Sempre ou talvez nunca. Penso, os meus pensamentos flutuam em balões de banda desenhada, e afinal, nunca me achei suficiente para te abraçar inteiro.
As palavras não saem, não sei essa senha secreta, para que a porta se abra, e finalmente veja a transparência dessa força enorme que és tu. Ou tu. Ou mesmo tu. Tu?
Mas quem és tu? Tu, pronome, tu, que eu revejo em tantos rostos e nunca reconheço. Adivinho-te no calor que quase sinto, e desenho-te nas nuvens feiticeiras que me descobrem e refrescam. Mas não nos vejo.
Ver. Preciso de ver. De ver a tua expressão pasmada ou furiosa, de sentir o teu abraço contido, de moldar esse olhar ao meu corpo e dizer-te, ou esconder-te, ou fechar-te, ou escrever-te.
Escorro de mim, a porta não cede, eu não cedo. Ou cedo e consumo o ar que cheira a saudade.
Morro? Não. Apenas me encasulo outra vez, uma e outra vez, uma e sempre outra vez.
Vivo? Só quando me encosto a essa porta, para morrer um pouco mais.
Acontecem sim, quando menos esperamos.
Vêm de mansinho e sopram-nos ternura ao ouvido, aconchegam e confortam.
Saí do caos lisboeta hoje. Ia despejar a minha raiva numa chama fugaz em comunhão com outras fugazes chamas, promessas dizem chamar-se, mas eu promessas não faço. Nem cobro.
Ia lamentar-me ao meu mundo fechado chamado fé, rogar ou suspirar no ombro ameno de sempre, feminino, masculino, Maria ou José, Emanuel ou simplesmente a presença doce no meu peito pela manhã.
E foi então que aconteceu. Enquanto olhava o fogo dormente e doloroso a queimar a frustração de nem palavras encontrar, ouvi-a. Os meus olhos queriam morder-lhe a voz por me arrancar ao meu lamento furioso, mas em vez disso espraiei um olhar terno como raramente faço. Foi-me devolvida a mesma ternura num pedido que me desarmou. Estiquei a mão e coloquei-lhe a vela no tosco castiçal. Afastei-me com um sorriso tatuado na alma.
Fiquei de pé a olhar para o rosto que nunca para mim fora maternal. Mas hoje foi. Não me lamentei nem desferi golpes surdos, não soltei a fera raiva, não explodi de indignação. Antes lhe entreguei, nas suas pequenas mãos, prontas para abraçar um mundo cheio de dores e penas, tudo o que as minhas palavras nunca poderiam dizer. E pela primeira vez, não houve pudor de medir palavras, desejos, frustrações. Só uma paz, que começou numa voz a interromper toda a onda de putrefacção que me consumia.
Fui. A luz entrava pelos olhos, sem doer, sem queimar, entrava em mim e de mim saía. Sentei, a almoçar um gelado criança como eu. Lembrei-me de quando tinha almoçado um gelado e sentado numas escadas, frente ao estádio. Falar de vinho, fogueiras, tropelias. Veio a saudade. Deixei-a a vir. Abracei-a, mas avisei-a.
Passei por Vale de Seta. Morri um pouco. Renasci, com o pensamento mais leve.
Tudo. Se te amo? Parece que sim. Se te quero? Talvez sim. Se te creio? Apenas creio no Sol, mesmo quando ele desaparece, e no amor, mesmo quando ele não me envolve.