Não quero ficar aqui.
Não quero ficar aqui a ver-te.
Não quero ficar aqui a ver-te ao longe.Não quero ficar aqui a ver-te ao longe sem saber.Não quero ficar aqui a ver-te ao longe sem saber o que somos.
Não quero ficar aqui a ver-te ao longe sem saber o que somos ao perto.~O frio das pedras do chão debaixo dos pés acordou-me os sentidos. É tão mais fácil estar inerte do que estar viva em carne desperta. Dizem que as pedras da calçada choram o destino de quem as pisa sem as ver. Eu digo e grito que choram por separarem passos que se querem. Não se quiseram antes, talvez não se queiram depois, talvez se queiram sempre, mas querem-se agora, enquanto a lua for cheia e as estrelas que vêem são as mesmas.~A saudade já foi uma mulher com um espartilho sufocante, lembro-me de o ter dito há uns anos. E hoje a saudade é uma faca aguçada que rasga a dor pequena em estilhaços de pequenos pormenores feitos de milimetros que se juntam para serem um longe.
~E é de noite que sei que há-de haver um dia em que não estou perto num sonho de algodão doce, vou estar perto num abraço que durou uma dança a mais na varanda, persistiu um compasso mais e soube a assassínio da saudade. Quero matar esta saudade e sufocá-la entre nós num abraço entre corpos, ela que morra entre mãos que se buscam e olhos que se vêem finalmente.~Dentro de mim tenho tudo. Sou uma folha dividida em mil palavras, cada uma com tantas outras por entender. Saibo a medo e trinco a gosto. Tenho frio e sou calor. Trago vida e pago em sonhos. ~As pedras da calçada agora riem-se... [não é um texto para ser entendido,
não é para ser sequer relido,
é apenas para juntar palavras sem sentido,
que sem sentido consigam definir
o que não tem nome,
cor ou cheiro,
mas que sabe a carícia distante,
na curva funda das tuas mãos,
das tuas, sim, porque sim]
[sempre precisei deste espaço
sempre regressei aqui
poucas vezes o partilhei
ainda menos vezes foi recebido ou compreendido
mas isto é o que sou
quando sou o que posso ser]
Estende a mão.
Estica o braço.
... vem do nada ao fundo da questão.
Há no ar um aroma estranho, como que desentranhado, como se sempre lá tivesse estado à espera de que alguém destapasse o frasco escondido no coração de todos os que ainda não o tinham cheirado.
Há no ar uns sorrisos desencontrados, há no ar um riso distante, há no ar o som do eco das paredes que se derrubam e o ar cheio de tudo encontra o pó da reconstrução. Ecos de risos, sinfonias de gritos. Há uma voz que se distingue, não pelo volume, mas pelo tom, pela textura, pelo sussurro manso, pela cor que se espalha nas suas palavras imperceptíveis.
E eu sento-me a ouvir. E deito-me a ouvir. E acordo a ouvir. Abro os olhos e não te vejo. Abro a mão e não te toco. Abro o corpo e não te encontro. Mas estás cá, onde não te espero, onde nem te chamei, resta saber se ficas... Pensar, só faz sentido tudo ser assim!
Estende a mão. Já está.
Estica o braço. Também.
Olha lá para fora. Sim?
O que vês? O mesmo que tu.
Estamos então? Onde estivermos.
Remordo o fundo do copo como se fosse líquida a minha falta de qualquer indefinição que nem consigo encontrar nas páginas de cadernos que poderia ter-te escrito mas não escrevi.
Embacio os olhos com as palavras dos dias e das noites de outras pessoas, à procura de uma que me diga onde estamos. As mãos podem tremer de cansaço e desejo de respostas, os olhos podem cegar de espera, o corpo pode sucumbir, mas tu persistes. Inexorável. E chego ao fim do livro e regresso ao início, quase me esquecia que o tinha deixado debaixo da almofada para o aconchegar todas as noites.
É no auge do grito que vejo o fim, tenho de sair daqui, tenho de sair daqui, tens de ser nada para mim, tens de fazer parte de outro alguém, assim não somos nada.
Estou no meio da sala e faz frio debaixo dos holofotes. Perdi a tua deixa, esqueceste-te que fazias parte desta peça. O público começa a ir embora, vieram para te ver.
Deixo o copo ao abandono... Pode ser que caia e se estilhace em pedaços do fim anunciado.
Regressas mais pesado... sinto a diferença na tua pele, mais seca e áspera, mas também mais minha. Sempre foi minha, não foi? Sempre estiveste no meu corpo enquanto não te via ao meu lado. Ficaste. Esperaste até ficares sem palavras para me dar. E eu que não te via.
Perguntaram-me "e vocês?" e eu quis perguntar-te "e nós?". Só que as palavras arranharam-me a garganta e dançaram na minha voz. Opaco, o medo entrou na conversa sem ter sido chamado, e sussurrou-me ao ouvido que a hora ainda não chegou. Quis gritar-lhe, explicar-lhe que o tempo era este, era agora, que "nós" sempre tinhamos existido, e ainda assim, a minha voz fugiu para dentro de ti, qual refúgio na tempestade. Mas a tua própria voz veio inundar os meus olhos enquanto o medo esfregava as mãos de contente. Outra vez.
Então pergunto-me "e nós?", e sozinha sei a resposta. Dançamos sem nos tocar, sentimos sem nos ver, ouvimo-nos no silêncio branco que nos invade desde que acordámos juntos sem o saber.
Não consigo fugir de ti. Nem quero. Desta vez, vou dizer ao tempo para não te esconder de mim...
Vamos partir... partir sem ver... pode ser que desta vez ...
Não é o cansaço que me consome. Parece que rio por dentro, que as gargantas que tenho em mim se põem a cantar melodias que desconheço.
Estendo as mãos e quase toco o sol. A luz quase me faz cócegas, torna-se líquida e é uma chuva de sóis com cheiro aos Verões de criança.
E farei da luz a minha bússola. Farei da distância o meu mapa. Gravarei as notas que me ecoam na alma como se de manuscritos se tratassem. E fá-lo-ei por mim.
Nasci hoje. Metade de mim ficou, a outra partiu há muito.
[como é possível escolher a ausência ao riso? como se fosse uma escolha, guardar-te comigo nas palavras ou guardar-te comigo nas ausências... não fui eu que te escolhi. Vejo que, como te pedi, trouxeste-me as asas numa bandeja de prata, não entendo como depois tens medo de voar]
E agora despedia-me baixinho do escuro e gatinhava até ti. Entrelaçava-me nos teus dedos e deixava-me ficar. Só porque tenho frio e as costas rangem de saudade. E tudo ficaria perdido no tempo do que fomos e não voltámos a ser. Dir-te-ia, de todas as vezes que os meus olhos te encontrassem, que te vejo sempre. Ficas colado na minha mão, sempre. E sempre é uma palavra tão doce, podemos abri-la e ela permanece, feita a letra de impressa ou a manuscrito medieval, fica iluminada por todas as promessas que já se fizeram sob si mesma, "amo-te para sempre", "odeio-te para sempre", "estarei sempre aqui", todas os sempres deste mundo não caberiam nesta palavra. Então não te vejo sempre.Mas agora, mais do que sempre, apetecia-me despedir do escuro morrinhento, despir o azul e negro que resta em mim, e ir ter contigo, atravessar cada átomo de distância como se a distância se medisse, e chegar ao pé de ti, enrolar-me na ponta dos teus dedos, só até chegares também...
Avisas-me, quando chegares?